O monge é pop – Maquiador, monge e voz ativa pelos direitos LGBTQ+, KODO NISHIMURA quebra tabus

Kodo Nishimura é japonês e traz (praticamente) todas as características conhecidas nos orientais: fala calma e educada, olhar analítico, além de sensatez nas ideias. Tudo isso é compreensível, afinal, frequentou templo budista da família e teve uma educação tipicamente japonesa, baseada em respeito e disciplina.

Mas quem pesquisa mais sobre sua vida, se surpreende. Hoje, Kodo é uma das maiores vozes em defesa da comunidade LGBTQ+ dentro e fora do Japão. Sim, o país que ainda enfrenta muitos tabus em relação a gêneros é, antagonicamente, o berço dele. E sentiu na pele o peso de tentar encontrar seu lugar em uma sociedade cujos princípios heteronormativos são como âncoras.

Aos 18 anos de idade, partiu para os Estados Unidos para estudar, tendo Boston como destino. Frequentou, posteriormente, a Parsons School of Design em Nova York e saiu de lá com um ofício: maquiador profissional. Retornou ao Japão com uma outra percepção do seu “eu” e buscou as origens, ao frequentar o curso de monge na escola Jodo shu (Pure Land School).

Credit: Derek Makishima

Com uma bagagem social, cultural e espiritual abrangente, Kodo lançou um livro que é sucesso mundial, o “This Monk Wears Heels” (“Este Monge Usa Saltos”, em tradução literal), para levar sua mensagem. Vale lembrar que, em breve, a obra será lançada no Brasil – inclusive com a visita do próprio Kodo para o lançamento. O Nippon Já bateu um papo antes do lançamento de seu livro no Brasil. Confira:

Nippon Já: Como podemos te chamar? Pode ser sr. Nishimura?

Kodo: Prefiro Kodo.

Nippon Já: Atualmente, você está trabalhando onde, em que país?

Kodo: Em março estive em Londres, em abril no Japão, este mês estarei na Espanha, voltarei ao Japão, em julho irei para Alemanha e agosto para França. (Entrevista realizada em junho de 2022)

Nippon Já: Se locomovendo por tantos países, não acaba prejudicando a sua saúde?

Kodo: Eu costumo dormir bem quando estou cansado.

Nippon Já: Quais outras coisas que você toma cuidado em relação a sua saúde, alimentação?

Kodo: Evito consumir alimentos derivados de leite e bebidas alcoólicas. E… Dormir bem. Admito que às vezes preciso dizer não, porque acabo ultrapassando do meu limite. Preciso descansar.

Nippon Já: E como maquiador, tem algum cuidado que você toma com a sua pele?

Kodo: Sabe aquela loção hidratante (chmada de) Gokujyun, da marca Rohto? Eu passo isso em todo o meu corpo, desde a cabeça até ao redor do buraquinho do meu bumbum. Só não passo na sola do pé.

Nippon Já: Quer dizer que hidratação é a chave?

Kodo: É o que eu acho.

Nippon Já: Gostaríamos de saber mais sobre o panorama da sociedade japonesa em termos de igualdade de gêneros. Como os japoneses têm encarados essas questões LGBTQ+?

Kodo Nishimura: Os japoneses não são muito receptivos ainda. Na Parada do Orgulho LGBTQ+ de Tóquio, tinha muita gente olhando com olhar de desprezo, tipo ‘o que é que está acontecendo? Quem são eles? Estão protestando contra o quê?’. Não é considerado algo positivo. Mas, recentemente vi dois homens de mãos dadas em Shibuya (Tóquio). Fiquei muito feliz porque foi a primeira vez que eu vi isso. Foi tipo ‘Ah! Queria ter visto isso enquanto ainda era jovem’. Então, é com pequenos passos, mas as coisas estão mudando. Por isso estou otimista.

Nippon Já: E sobre o seu trabalho, qual foi que você começou primeiro, artista de maquiagem ou monge?

Kodo: Comecei primeiro como artista de maquiagem.

Credit: Arquivo Pessoal Kodo Nishimura

Nippon Já: E como foi que decidiu se tornar monge também?

Kodo: Primeiramente porque minha casa é um templo, meu pai é um monge. Mas quando era pequeno não queria seguir seus mesmos passos, então fui para os Estados Unidos e frequentei faculdade de artes. Nisso senti a necessidade de criar um estilo meu único, então tentei incorporar técnicas de kado (arte de arranjos florais) ou origami nos meus trabalhos já que sou japonês. Mas percebi que não precisa ser japonês para conseguir isso. Foi aí que decidi encarar o budismo que tanto discriminei e mergulhar nisso. Acho que a minha forma de arte é transmitir o que eu senti com essa experiência e como eu aceitei a minha homossexualidade. Por isso eu precisei entrar para o budismo, mesmo que antes eu não gostasse.

Nippon Já: Por quais motivos você decidiu estudar nos Estados Unidos?

Kodo: Na época, eu estava bastante angustiado por ter me reconhecido homossexual e não conseguir contar isso para as pessoas ao meu redor. Nos desenhos de animação japoneses, como por exemplo “Sailor Moon”, “One Piece” e “Crayon Shin-chan”, os personagens homossexuais nunca tinham papel de protagonista, eram sempre vilãos ou quem fica perturbando os outros… Acho que era muito comum de ser apresentado como um personagem nojento. E isso influencia os valores de muita gente do Japão para sermos desrespeitados sendo chamados de “gay” ou “viado”. Estava de saco cheio de viver em um país assim. Foi quando o contato com os programas de televisão e as músicas dos Estados Unidos me fez sentir que lá a diversidade e as pessoas terem mais liberdade de expressão eram mais aceitas.

Credit: Seth Miranda

Nippon Já: Qual a reação dos seus pais em relação aos seus trabalhos?

Kodo: No começo, meu pai ficou bem preocupado, porque naquela época homossexuais não eram muito bem-vistos socialmente e ele temia que pessoas mal-intencionadas pudessem aproveitar sexualmente de mim. Já em relação a minha mãe foi mais tranquilo. Teve aquela confusão de “você quer virar mulher? você é gay?”, mas logo ela conseguiu me aceitar e me apoiar.

Nippon Já: Foi durante o seu intercâmbio nos Estados Unidos que você decidiu ser artista de maquiagem?

Kodo: Isso. Inicialmente, fiz um curso de dois anos de artes liberais em uma universidade de Boston. Depois de completar o curso, me matriculei em uma faculdade de arte em Nova York chamada Escola de Desenhos Parsons, lá estudei belas-artes. Quando estava no terceiro ano, comecei a trabalhar como assistente de maquiador. Foi assim que comecei meus estudos sobre maquiagem fora das aulas da faculdade e comecei a trabalhar na área.

Nippon Já: Durante a sua atuação como artista de maquiagem é que surgiu a ideia de se tornar monge também?

Kodo: Participei de treinamento para me tornar monge depois da faculdade. Se não me falha a memória, isso acontecia no período das férias de verão e de inverno, por algumas semanas, e ao todo eram cinco vezes. Então, leva-se mais de 2 anos para concluir o treinamento. Aí eu ia para o Japão e depois voltava para os Estados Unidos, ia e voltava… E fiquei nisso por um período, trabalhava com maquiagem e treinava para ser monge.

Nos desenhos de animação japoneses, como por exemplo “Sailor Moon”, “One Piece” e “Crayon Shin-chan”, os personagens homossexuais nunca tinham papel de protagonista, eram sempre vilãos ou quem fica perturbando os outros…Acho que era muito comum de ser apresentado como um personagem nojento. E isso influencia os valores de muita gente do Japão para sermos desrespeitados sendo chamados de “gay” ou “viado”. Estava de saco cheio de viver em um país assim.

Nippon Já: Que admirável. Foi difícil conciliar as duas atividades?

Kodo: Bem… Quando eu tinha que voltar para o treinamento, eu ficava ‘eu não queria, mas preciso’. Quando acabava, “ufa, acabou, agora só daqui meio ano”. Eu não gostava muito não, mas aguentei (risos).

Nippon Já: O que te motivou a continuar com o treinamento mesmo não gostando?

Kodo: Acho que não conseguimos entender algo por completo se não persistimos até o final. E por mais que o treinamento fosse puxado, tinha os colegas que treinavam juntos para apoiar um ao outro. Sentia que juntos conseguiríamos completar a missão.

Nippon Já: Sentiu alguma diferença após concluir o treinamento?

Kodo: Sim. Passei a ter mais confiança em relação a minha aparência e sexualidade. No budismo, é ensinado que toda e qualquer pessoa é perdoada e abençoada igualmente. Por exemplo, mesmo que ela já tenha se prostituído ou tenha cometido algum crime, não tem problema algum. Desde que haja a fé, qualquer pessoa é perdoada e abençoada. E isso cabe para sexualidade também. Então passei a não disfarçar mais sobre a minha sexualidade e ter orgulho disso. Aprendi também que o papel mais importante de um monge não é preservar a sua imagem tradicional, mas transmitir e difundir que todas as pessoas merecem o perdão e a salvação. Então, acredito que eu sendo eu mesmo consigo transmitir isso para mais pessoas. Porque, imagine: se eu não me maquiasse, se eu não calçasse saltos, acho que eu não teria espaço nas mídias, muito menos estar sendo entrevistado agora. Mas, por eu ser eu mesmo consigo fazer que as pessoas percebam ‘ah, não tem nenhum problema em ser homossexual’, e acho que isso faz parte da igualdade que o budismo ensina. Por isso, passei a querer trabalhar não me disfarçando mais.

“Esse é um livro para você adquirir mais confiança. Mesmo que alguém te diga ‘você é diferente’ ou ‘você não está atendendo as expectativas que o mundo quer’, com certeza você tem um diferencial único e é nisso que você deve se orgulhar” – Sobre o Livro “this Monk Wears Heels”

Nippon Já: No Brasil, há muitas pessoas que não aceitam a homossexualidade por conta da religião e sofrem por não conseguir contar com a compreensão dos pais e familiares.

Kodo: No budismo também nunca foi abordado questões LGBTQ+. Por exemplo, ninguém do LGBTQ+ já chegou a perguntar antes se o budismo aceita homossexualidade. Por isso, sempre foi tratado como se não existíssemos. Mas, eu falando publicamente que sou de LGBTQ+, e transmitir que não tem nenhum problema de seguir o budismo sendo LGBTQ+, espero que seja um ponto de partida para discutirem mais sobre isso em outras religiões também. “Existem várias religiões e vários jeitos de pensar”, espero que esse valor seja cada vez mais difundido.

Nippon Já: Você já ficou sabendo de outros casos como o seu, por exemplo que é budista ou monge e assumiu a homossexualidade, desde que você abriu publicamente sobre sua sexualidade?

Kodo: Sim. Uma vez recebi mensagem pelo Instagram. E outra vez foi no desfile do Rainbow Pride Kanazawa. Um monge veio conversar comigo e se abriu dizendo ‘eu também sou, mas não consigo contar isso para as pessoas ao meu redor’. Eu tenho certeza de que são muitas as pessoas que não expressam ou não conseguem expressar sua sexualidade. Imagino que algumas delas pensam ‘sou homossexual, mas preciso me casar e ter filhos’ por não terem outra opção, sendo obrigados a atenderem a esse tipo de expectativas. Outro dia estava vendo os dados do Japão e 80% da população LGBTQ+ dizem não ter aberto sobre sua sexualidade no ambiente de trabalho. Acredito que monges também entram dentro dessa estatística. Por isso, espero que eu consiga inspirar essas pessoas, mostrando como trabalho com orgulho da minha sexualidade.

Nippon Já: A sua primeira viagem para o exterior foi com intercâmbio ou já tinha viajado outras vezes?

Kodo: Acho que a primeira vez foi quando eu tinha mais ou menos 3 anos, que fui para Alemanha ou Inglaterra a passeio, depois fui com 5 e 7 anos também… É que os meus pais fizeram intercâmbio na Alemanha antes de eu nascer, por isso era bastante comum viajarmos para outros países. Quando estava na escola secundária [equivalente a 7º a 9º ano do ensino fundamental] fomos ao Havaí, Austrália e vários outros países. Mas nunca fui para nenhum dos países da América do Sul ainda. Já fui a México e Cuba, até sei falar espanhol, então morro de vontade de conhecer aí.

Nippon Já: Seria muito legal a sua visita aqui no Brasil. Pelas suas experiências, imagino que não tenha sofrido tanto com choque cultural durante o seu intercâmbio. Mas havia alguma preocupação?

Kodo: Acho que foi inevitável eu acabar sofrendo por conta da diferença na aparência, como, por exemplo, a altura e o tamanho dos olhos. Mas em 2007 eu vi a notícia de que uma japonesa foi a campeã do Miss Universo e logo pude aprender que não precisa de olhos azuis, ser alto ou loiro para que alguém me ache bonito. Na época eu me sentia inferior por causa da minha raça, mas tive várias descobertas e hoje eu tenho orgulho disso. Então, estava sim acostumado com culturas diferentes de cada país, mas toda vez eu enfrentava um conflito interno.

Nippon Já: Sobre o livro ‘This Monk Wears Heels’, qual a mensagem que você mais quer transmitir aos leitores?

Kodo: Esse é um livro para você adquirir mais confiança. Mesmo que alguém te diga ‘você é diferente’ ou ‘você não está atendendo as expectativas que o mundo quer’, com certeza você tem um diferencial único e é nisso que você deve se orgulhar. Então falei sobre ensinamentos do budismo que te ajuda a acreditar nisso, além de compartilhar minhas experiências como um artista de maquiagem.

Nippon Já: Você gostaria de visitar ao Brasil ou outros países da América do Sul?

Kodo (em espanhol): Sim, muito! Eu tenho interesse pela música e pela culinária desses lugares, quero fazer novas amizades também! Espero poder lançar o meu livro em português e assim terei motivo para visitar o Brasil.

Nippon Já: O que você imagina quando se trata em “Brasil”?

Kodo (em espanhol): Imagino muitas aves tropicais, samba… Ai, como chamava aquele filme mesmo? Aquele que aparecem várias aves… Vou pesquisar, só um minuto. Ah! É “Rio”.

Nippon Já: Ah, sim, aquela animação de pássaros.

Kodo (em espanhol): Sim, sim. E amo a música brasileira. Tanto que aprendi a música “Meu Sonho” do Kaleidoscópio em um mês. Eu gosto tanto dessa música que aprendi ela mesmo a letra sendo em português.

Nippon Já: Você pode cantar um pedaço para nós?

Kodo (em espanhol): (Depois de cantar o refrão da música) Muito obrigado. Para mim, aprender um novo idioma com ajuda da música é muito mais fácil. Você não precisa decorar a gramática, as palavras. Você absorve tudo isso naturalmente com a música. Por isso aprender cantando é o melhor jeito para mim. Também quero fazer amigos brasileiros para treinar meu português.

Nippon Já: Imagino que inglês você seja fluente por conta do intercâmbio e de seu trabalho. Mas e espanhol? Como você aprendeu?

Kodo (em espanhol): Meu melhor amigo é de Barcelona. Quando tinha 18 anos, fui a passeio para Barcelona e lá conheci um menino chamado Sergio, que foi o primeiro amigo com quem pude conversar abertamente sobre a minha sexualidade. Até então, eu nunca conseguia falar assuntos do tipo ‘ei, qual menino você acha mais bonito?’. Mas, com o Sergio eu pude me sentir a vontade para ser eu mesmo. Quis conversar mais com ele e sua família, os visitei várias vezes. Foi através de aulas e professores que aprendi espanhol.

Nippon Já: A comunidade nikkei no Brasil, por consequência de alguns fatores históricos, não tem tantos debates em relação a LGBTQ+. Assim, muitas pessoas se sentem desconfortáveis para se assumirem na questão de gênero. Qual mensagem você pode enviar a essas pessoas?

Kodo: Gostaria de dizer a elas que ‘sua família e a comunidade precisaram proteger seus direitos para serem aceitos no Brasil’. Assim como você falou antes, já ouvi dizer que, por conta dos atributos físicos e outras diferenças, os japoneses foram discriminados ou não eram muito bem recebidos nas terras que imigraram. Por isso, consigo entender muito bem o sentimento deles de se protegerem. Acredito que para eles se adaptarem e serem aceitos no Brasil não tiveram a escolha de serem como eles são de verdade. Pode ser que esse tipo de mentalidade tenha resultado na rejeição da igualdade LGBTQ+. Acho que quando uma pessoa é rejeitada e desrespeitada, fica difícil para ela respeitar a diversidade. Por isso, é importante compreender que a rejeição da família ou da sociedade nikkei têm esses motivos. Conseguindo isso, você poderá ter um pouco mais de empatia por aquelas pessoas que não tiveram a liberdade para ser como são de verdade. Quando você se sentir rejeitado e frustrado por não conseguir se assumir, talvez possa tentar pensar em ‘Como posso mudar a minha comunidade?’, ‘O que posso fazer para encorajar minha família para serem mais confiantes, mesmo sendo diferentes dos brasileiros?’. Se você conseguir refletir sobre essas coisas, acredito que você se sentirá um pouco melhor, observando os problemas de uma perspectiva mais ‘alta’.

Credit: Masaki Sato

Nippon Já: Para encerrar, o que você falaria se você pudesse mandar uma mensagem para si mesmo do passado?

Kodo: Que não tem nada de errado em viver sendo você mesmo, seja homossexual ou gostando de princesas da Disney. Não tem nada de errado. É a sociedade que ainda não é a favor da diversidade e ainda não consegue pensar além das coisas que foram ensinadas. Mas a verdade é que podemos amar quem nós quisermos. Por isso, não seja influenciado pelo que a mídia ou as pessoas ao seu redor falam e mostram. Você sabe o que é o certo e isso é o mais importante.

Mais informações sobre o livro “This Monk Wears Heels” AQUI

(Reportagem: Lika Shiroma – Edição: Rodrigo Meikaru)

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